18 de septiembre de 2024

iNaturalist, lição de humildade

Esse ambiente aqui, iNaturalist, para mim, foi mesmo uma lição de humildade. E me fez rever valores que são incutidos em nossas mentes, principalmente, nos ambientes mais tradicionais.

O iNaturalist foi, talvez, o mais poderoso choque de realidade que vivi. Já na primeira semana na qual inscrevi meu perfil, entendi que meus diplomas, eventuais publicações ou ocupações como pesquisadora e professora universitária, aqui, não contribuiriam com NADA. Se quisesse fazer uso deles aqui, seria em prejuízo das pessoas que estavam fazendo conhecimento voluntariamente.

Lá fora, é muito fácil nos deixarmos seduzir pela ideia de que escalando diplomas, posições institucionais, artigos e livros publicados, poderemos nos estabelecer como melhores do que outras pessoas. Nos deixamos aliciar pela ilusão de que é possível conquistar algum “papel” capaz de dispensar legitimamente as comprovações de nossas afirmações, de que existe algum “papel” capaz de nos fazer uma autoridade autêntica. Não existe. No máximo podemos ser autoridade investida de poder sobre outros. Somos educados a buscar isso porque ainda é um caminho disfarçado de superioridade e segurança para alcançar posições e remunerações. Mas nossa coleção particular de “papéis” e logomarcas nos holerites, por mais que nos façam parecer acima dos outros, não nos fazem efetivamente mais que ninguém. Pelo menos não quando o assunto é conhecimento de verdade.

O iNaturalist consegue nos devolver esta realidade, como um tapa na cara. Aqui não adiantaria pegar qualquer um dos meus diplomas e afirmar que a espécie era tal. Menos ainda que sou fulana formada assim e assado, dizendo que a espécie é tal, e isso não se discute porque o outro não é diplomado como eu. Isso faria de mim apenas mais uma estúpida arrogante. Aqui não tem espaço para nenhum diploma, nenhuma posição. Ou eu contribuo de fato argumentando e apresentando evidências, compartilhando o que fiz e aprendi, ciente de que em um minuto alguém pode refutar, ou fico quieta. Fora disso, é atrapalhar.

Tinha chegado a hora de entender, o iNaturalist é para os fortes. E fortes, nesse caso, são os que sabem lidar com as correções honestas de seus erros em público, não raro, vindas de um não diplomado. Fortes não são os que de cima de um pedestal corrigem um subordinado em condição inferior de poder. Esse último tipo de situação é que deve ter inspirado Paulo Freire a uma de suas máximas: o desejo do oprimido é ser opressor. E não faltam oprimidos buscando quem oprimir pelo mundo... e pelo iNaturalist. Não faltam vítimas de autoritários, desejando ser autoridade para oprimir, orientandos, desejando orientar para oprimir, alunos do maior especialista, desejando ser o maior especialista para oprimir. Não quero ser mais uma, que sem dúvida foi oprimida, e agora deseja encontrar quem oprimir impondo meus “papéis”, que aqui, são insignificantes.

Para piorar minha situação de novata no iNaturalist, o que via as pessoas produzindo, diariamente, também nunca tinha visto em nenhum banco acadêmico. As minhas crenças, alimentadas desde a infância até a academia, estavam se dissolvendo bem rápido.

Doeu. E veio um luto inevitável. Houve sim um luto pela perda de uma fantasia. Um luto pela ressignificação de uma “papelada”, ali oca, que, mesmo modesta, já tinha sido uma saga para escalar.

Uma saída, a que muitos certamente recorrem, seria assumir uma postura de voyeur. Ficar assistindo aquilo tudo e tentando desconstruir e desqualificar pelas costas. Mas, para mim, isso era só mais uma forma de continuar alienada a uma quimera que já tinha se espatifado em um milhão de pedaços.

O jeito era encarar aquele luto que me despiu. E me assumir nua daquelas proteções de outros universos, foi o que me permitiu começar a vislumbrar uma coisa muito mais atraente, muito mais bonita. A construção livre e pura do conhecimento legítimo acontecendo ali, na minha frente, e em tempo real.

Só restava ser honesta, assimilar e admitir que, finalmente, estava aprendendo mesmo sobre o que me apaixonava, as borboletas. Estava aprendendo como nunca, primeiro em campo, estudando meus registros, propondo identificações, e, em seguida, aqui, com gente talentosa, inteligente, desprendida e humilde, sem diploma, sem cargo e sem dessas publicações para contar pontos. Gente privada do acesso a coleções científicas, a artigos publicados em acesso fechado, que exigem pagamento para leitura. Gente que aprendia com autonomia e de formas inacreditáveis. Vi várias vezes esta produção essencialmente honesta, inata, visceral, indo parar em nomes de outros, por atos covardes e discriminatórios de quem segue abduzido pela escalada louca atrás de sua cenourinha. Mas até isso parecia fazer pouca diferença, afinal, a produção original já estava publicada ali, escancarando vergonha para quem abusava indevidamente dela.

Um tempo depois disso, acabei fazendo as pazes com meus “papéis”. Afinal, são fonte de sobrevivência. Só que eles não me enganam mais. Sei que me autorizam a isto e aquilo, mas não são conhecimento e não fazem de mim mais do que ninguém.

É, sou grata por esta lição. E por conseguir ver o valor deste reduto, reconhecendo três quesitos principais dentre os que fazem do iNaturalist esta casa única de conhecimento legítimo.

  1. A produção (registros/observações), que faz um reconhecimento ser merecido individualmente, tem a consequência inevitável de constituir benefício coletivo.
  2. As contribuições desprendidas, voluntárias, que fazemos para as outras pessoas, ajudam toda a rede a crescer.
  3. As contribuições generosas que recebemos... nos fazem melhor do que já fomos.

Acredito que podemos interpretar extensivamente, sem medo. Foram estes pontos que se revelaram, para mim, como engrenagem da construção conjunta do conhecimento de forma produtiva, justa, equilibrada e harmoniosa.

Publicado el 18 de septiembre de 2024 a las 08:23 PM por zamoner_maristela zamoner_maristela | 0 comentarios | Deja un comentario

03 de septiembre de 2023

ESCLARECIMENTO SOBRE A PROTEÇÃO LEGAL DAS PUBLICAÇÕES DE REGISTROS DE BIODIVERSIDADE FEITAS POR BRASILEIROS NA PLATAFORMA INATURALIST

Maristela Zamoner

Atualmente, inaturalist.org, iniciativa da tradicional instituição científica Academia de Ciências da Califórnia, é a maior plataforma mundial de ciência cidadã para publicações de registros de observações de biodiversidade, destacadamente em vida e nos seus ambientes. Cada uma das publicações de registros de observações de biodiversidade ali feitas, é composta pelos conteúdos que seguem:

  1. AUTOR(A): SINAL CONVENCIONAL LINCADO OU NÃO AO NOME COMPLETO;
  2. DATA DA PUBLICAÇÃO;
  3. FOTOGRAFIA(S) do autor obtida(s) por ele em atividade de campo, testemunho visual da presença da espécie de biodiversidade, da qual fazem parte indissociavelmente seus dados (metadados) que abrangem o local e a data (podem abranger arquivos de sons e vídeos);
  4. CARTA GEOGRÁFICA (MAPA) com marcação do local do registro da observação, gerada pelos dados produzidos em campo por seu autor;
  5. IDENTIFICAÇÃO TAXONÔMICA do espécime registrado, proposta pelo autor com ou sem aceite de revisão e aprimoramento dos pares via plataforma (Táxon comunitário). Inclui área de atividade da comunidade, local destinado à participação de qualquer interessado na CURADORIA aberta, por meio das discussões sobre as identificações da espécie. Este campo é arbitrado pelo autor que tem ferramental para aceitar ou rejeitar participações da comunidade na sua publicação, assegurando a autonomia sobre a curadoria do seu acervo e de sua base de dados;
  6. TEXTOS abrangendo os conteúdos produzidos pelo autor, incluindo; dados de georreferenciamento (coordenadas geográficas numéricas, grau de precisão em metros, nome do local quando há, município, estado e país); locais do entorno; data e horário da realização do registro da observação; tipo de equipamento utilizado pelo autor para realizar o registro da observação; reconhecimento como vida selvagem ou não; notas, marcações, campos de observação e anotações quando necessário (estágio de vida, sexo etc.), projetos para os quais a inclusão da publicação é autorizada pelo autor e, entre outros, título original e inconfundível que a plataforma de publicação, inaturalist.org, orienta que seja a URL;
  7. LICENÇA DE USO (COPYRIGHT ou CREATIVE COMMONS) DA FOTOGRAFIA, definida pelo autor, titular originário;
  8. LICENÇA DE USO (COPYRIGHT ou CREATIVE COMMONS) dos demais conteúdos da publicação do registro da observação, definida pelo autor, titular originário.

NO BRASIL: PROTEÇÃO DE DIREITOS AUTORAIS DOS AUTORES BRASILEIROS DAS PUBLICAÇÕES DE REGISTROS DE BIODIVERSIDADE NO INATURALIST

Lembramos inicialmente que a violação dos direitos autorais e os que lhes são conexos no Brasil, estabelecidos pela Lei Federal no. 9.610/98, está tipificada no Código Penal:

TÍTULO III DOS CRIMES CONTRA A PROPRIEDADE IMATERIAL
CAPÍTULO I DOS CRIMES CONTRA A PROPRIEDADE INTELECTUAL
Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos:

Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa

No Brasil os direitos autorais foram estabelecidos a partir da convenção de Berna da qual nosso país é signatário, sendo abarcados pela Lei Federal no. 9.610/98, que abrange brasileiros. Esta lei define o que é uma obra intelectual estabelecendo suas formas de proteção:

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, considera-se:
VIII - obra:
f) originária - a criação primígena;
...
XIV - titular originário - o autor de obra intelectual, o intérprete, o executante, o produtor fonográfico e as empresas de radiodifusão.
...
Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como:
I - os textos de obras literárias, artísticas ou científicas;
...
VII - as obras fotográficas e as produzidas por qualquer processo análogo ao da fotografia;
...
IX - as ilustrações, cartas geográficas e outras obras da mesma natureza;
...
XIII - as coletâneas ou compilações, antologias, enciclopédias, dicionários, bases de dados e outras obras, que, por sua seleção, organização ou disposição de seu conteúdo, constituam uma criação intelectual.

Portanto, resta claro que as publicações de registros de observações de espécies no iNaturalist, perante a legislação que abrange brasileiros, SÃO OBRAS, posto que se caracterizam como criações primígenas (criadas por primeiro). Perante a mesma lei, são OBRAS INTELECUTAIS ORIGINÁRIAS, cada uma delas composta pela organização ou disposição de seus conteúdos que abrangem textos, fotografia(s) (da qual fazem parte o conteúdo da imagem capturada, seus dados como local e data) e carta geográfica. Seus autores, por consequência, são seus TITULARES ORIGINÁRIOS.

As fotografias de biodiversidade publicadas no iNaturalist em especial, não se resumem a uma imagem. É parte indissociável de cada uma destas fotografias, o conteúdo capturado na imagem e o seu conjunto organizado de dados que incluem, por exemplo, o local onde foi obtida, sua data e autor entre outros. Portanto, utilizar quaisquer dos conteúdos que fazem parte de uma fotografia, como características do ser nela capturadas ou seu local, é utilizar a fotografia.

O conjunto destas publicações de cada autor forma ainda sua base de dados na plataforma, denominada Life List (exemplo: https://www.inaturalist.org/lifelists/zamoner_maristela).

A mesma citada lei estabelece como direitos do autor:

Art. 24. São direitos morais do autor:
...
II - o de ter seu nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anunciado, como sendo o do autor, na utilização de sua obra;
...
IV - o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra;
V - o de modificar a obra, antes ou depois de utilizada;

O fato de que as publicações de registros de biodiversidade no iNaturalist se encontram em acesso aberto, não é sinônimo de estarem em domínio público. Somente se estivessem em domínio público poderiam ser utilizadas por qualquer modalidade, modificadas, reproduzidas total ou parcialmente, sem o crédito ao nome de seu autor.

Desta forma fica esclarecido: UMA PUBLICAÇÃO DE REGISTRO DE BIODIVERSIDADE FEITA NO INATURALIST É UMA OBRA INTELECTUAL PROTEGIDA POR LEI QUE ABRANGE AUTORES BRASILEIROS, E SUA VIOLAÇÃO É TIPIFICADA PELO CÓDIGO PENAL.

Estabelece ainda o Art. 27 da mesma Lei Federal 9.610/98:

Art. 27. Os direitos morais do autor são inalienáveis e irrenunciáveis.

Existe o argumento recorrente em redes sociais, e outros meios, de que quando o autor da publicação do registro de biodiversidade no iNaturalist desconhece a identificação taxonômica do que registrou, perde direitos autorais para aquele que fez a identificação, deixando de ser necessário creditar a sua autoria no caso de utilização de conteúdos de sua publicação.

Este argumento não tem qualquer respaldo legal.

Cabe lembrar, de forma subsidiária, que as identificações pelos autores dos registros são severamente prejudicadas por estratégias de exclusão científica, a exemplo de artigos científicos com conteúdos necessários à atividade serem publicados de forma fechada, e/ou falta de democratização das coleções de animais coletados.

De qualquer forma, as obras protegidas estão elencadas no Art. 7º da Lei Federal 9.610/98 e nenhuma delas se refere ao resultado da tarefa de identificar uma espécie da biodiversidade em um registro feito por terceiro.

Não existe previsão legal para que se proceda uma alienação de um registro de biodiversidade do autor original para outra pessoa que tenha feito sua identificação taxonômica. Há que se ressaltar o fato de que quem faz uma identificação taxonômica de um registro fotográfico de biodiversidade do iNaturalist, UTILIZA PARA TAL o conteúdo capturado pela fotografia. Portanto, sem UTILIZAR a fotografia, esta informação sobre a identificação da espécie não tem como existir. Além de ser cientificamente recomendável apontar a origem da informação da identificação, o que se faz reconhecendo a autoria da fotografia UTILIZADA, a Lei Federal 9.610/98 é clara quanto a UTILIZAÇÃO de obra protegida:

Art. 28. Cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica.
Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como:
...
X - quaisquer outras modalidades de utilização existentes ou que venham a ser inventadas.
Art. 79. O autor de obra fotográfica tem direito a reproduzi-la e colocá-la à venda, observadas as restrições à exposição, reprodução e venda de retratos, e sem prejuízo dos direitos de autor sobre a obra fotografada, se de artes plásticas protegidas.
§ 1º A fotografia, quando utilizada por terceiros, indicará de forma legível o nome do seu autor.

O portal iNaturalist tem conduta compatível com a legislação brasileira no que tange a esta questão. A plataforma abre a participação em identificações de espécies de cada publicação a qualquer interessado. E independente de quantas pessoas, que não são o autor, venham a participar do processo de identificação, a autoria do registro não é alienada para nenhuma delas, em qualquer hipótese. A própria plataforma mantém a arbitragem sob o poder do autor da publicação do registro de biodiversidade. O autor original pode aceitar as propostas de identificação como colaborações, incorporando-as à publicação que permanece sob sua autoria, ou pode rejeitá-las, o que é compatível com o estabelecido pela Lei Federal 9.610/98:

Art. 35. Quando o autor, em virtude de revisão, tiver dado à obra versão definitiva, não poderão seus sucessores reproduzir versões anteriores.

Da mesma forma é importante entender que o uso de dados dos registros também merece cuidado para não violar direitos autorais. Os autores que publicam registros de biodiversidade no iNaturalist formam suas bases de dados na plataforma, constituídas por conjuntos organizados de dados, informações e mídias como imagens e/ou sons. Estas bases de dados podem ser consultadas de diversas maneiras, inclusive pela sua organização na forma de Life List. E as bases de dados também são expressamente protegidas pela Lei Federal 9.610/98:

Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como:
XIII - as coletâneas ou compilações, antologias, enciclopédias, dicionários, bases de dados e outras obras, que, por sua seleção, organização ou disposição de seu conteúdo, constituam uma criação intelectual.
Art. 87. O titular do direito patrimonial sobre uma base de dados terá o direito exclusivo, a respeito da forma de expressão da estrutura da referida base, de autorizar ou proibir:
I - sua reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo;
II - sua tradução, adaptação, reordenação ou qualquer outra modificação;
III - a distribuição do original ou cópias da base de dados ou a sua comunicação ao público;
IV - a reprodução, distribuição ou comunicação ao público dos resultados das operações mencionadas no inciso II deste artigo.

Desta forma fica claro que a lei brasileira não permite utilização de fotografias da autoria de brasileiros, nem dos dados e informações que fazem parte dela, nem das bases de dados que as integram, sem a atribuição do crédito autoral, citação do nome, pseudônimo ou sinal convencional do autor original. Qualquer modalidade de utilização destes conteúdos deve obrigatoriamente citar o nome do seu autor original.

Fica esclarecido assim, que a utilização de fotografias sem autorização expressa do autor e sem a citação do seu nome, pseudônimo ou sinal convencional, seja pela reprodução direta da imagem ou pela utilização de quaisquer dos seus conteúdos para produzir informações como identificação da espécie, constitui violação de direitos autorais, CRIME tipificado no Código Penal.

Esta ideia equivocada de que há alienação de direitos autorais do autor original para um identificador de espécie, talvez tenha origem na forma de utilização de coleções de animais coletados. Os coletores de animais não têm proteção de direitos autorais sobre o os animais que coletaram e nem sobre seus dados. Portanto, há séculos os pesquisadores utilizam animais de coleções e seus dados, em publicações feitas sob sua autoria, sem a necessidade de citar nomes de coletores e nem de identificadores, embora tais citações sejam pertinentes à boa ciência. Mas registros de biodiversidade publicados em uma plataforma como o iNaturalist, são juridicamente diferentes de animais coletados. São obras intelectuais protegidas por lei, portanto, qualquer modalidade pela qual se faça sua utilização, total ou parcial, exige a citação do nome, pseudônimo ou sinal convencional do autor. O que não impede o autor de agradecer a quem colaborou na identificação da espécie por ele registrada.

INTERNACIONAL: PROTEÇÃO DOS DIREITOS AUTORAIS DAS PUBLICAÇÕES DE REGISTROS DE BIODIVERSIDADE NO INATURALIST

Internacionalmente esta natureza de obra também tem proteção, pelos sistemas Copyright e/ou Creative Commons. O próprio iNaturalist permite que o autor defina as licenças de uso válidas internacionalmente conforme seus interesses, instruindo quem fizer uso das suas publicações a indicar o nome do autor da publicação da observação (observador), citando-o também entre as referências bibliográficas no seguinte formato: “[Observer name]. [year of posting to iNaturalist]. iNaturalist observation: [url for observation]. Accessed on [date of access]” (https://www.inaturalist.org/pages/help#science1).

Instrui ainda a mesma plataforma, que para todas as publicações com configurações de copyright “No licence” (que não compartilham seus conteúdos com a plataforma do Global Biodiversity Information Facility), é obrigatória a indicação dos nomes de seus autores em qualquer circunstância de uso dos conteúdos da observação e da fotografia separadamente.

A SOCIEDADE RECONHECE COMO AUTOR AQUELE QUE PUBLICA SEU REGISTRO DE BIODIVERSIDADE NO INATURALIST

Faz-se essencial frisar que é notória a importância científica de um primeiro registro de espécie em vida para uma cidade, seja realizado por um profissional ou não, e isso é amplamente respeitado, não somente por cientistas sérios, como pela sociedade em geral. As publicações feitas no iNaturalist não fogem desta realidade, a exemplo do que se demonstra na reportagem que segue (https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/terra-da-gente/noticia/2023/07/31/brasileiro-e-autor-do-unico-registro-da-borboleta-neruda-metis-em-plataforma-internacional-de-ciencia-cidada.ghtml). Esta reportagem mostra inequivocamente que a própria sociedade reconhece aquele que publica seu registro de biodiversidade no iNaturalist como seu legítimo AUTOR.

Publicado originalmente em: https://terra-das-borboletas.blogspot.com/2023/09/esclarecimento-sobre-protecao-legal-das.html

Publicado el 03 de septiembre de 2023 a las 06:17 PM por zamoner_maristela zamoner_maristela | 4 comentarios | Deja un comentario

07 de julio de 2023

INATURALIST E O CURRÍCULO MANCHADO PELO DESRESPEITO AOS DIREITOS RESERVADOS

Por Maristela Zamoner

Meus registros no iNaturalist são, quase na sua integralidade, configurados sem nenhuma licença de uso, com todos os direitos reservados, portanto, o uso de fotografias e sons é proibido sem minha expressa autorização, como é ilegal o uso de quaisquer dados, sem a citação nominal da autoria. Já recebi críticas por isso, de pessoas que desejavam fazer uso de resultados sem precisar solicitar autorização. Então, vale uma boa explicação da razão desta escolha.

Quando publicamos no iNaturalist com a sua configuração padrão, reconhecida pela sigla "BY-NC", autorizamos outras pessoas a usarem nossos resultados de forma não comercial, embora com o dever de citar o autor. Isto significa, resumindo, que assim você autoriza o uso de seus dados, suas fotografias, seus sons e o que mais você acrescentar, sem a necessidade nem mesmo de ser informado sobre como e para que fins este uso do seu trabalho será feito, desde que, basicamente, seu nome seja citado e este uso não seja comercial. E mais do que isso, com esta configuração padrão, você autoriza o automático compartilhamento dos dados que produziu no Global Biodiversity Information Facility, o GBIF, uma organização internacional que se dedica a disponibilizar dados científicos de biodiversidade pela internet. E a política de direitos autorais desta entidade admite o uso de dados sem créditos autorais.

No iNaturalist encontramos a orientação expressa a quem quer fazer uso de qualquer conteúdo das observações ali publicadas, para citar o nome dos autores. Esta orientação se direciona a duas distintas circunstâncias. A primeira é quando o volume de dados utilizados estiver em torno de até 10 publicações, ou observações. A segunda é quando se tratam de dados que não estão compartilhados no GBIF.

Todas as alternativas de licenças admitem algum tipo de uso sem que você seja informado previamente. Então, a forma de proteger nossas publicações contra usos que desconhecemos e da perda de direitos de citação pelo compartilhamento no GBIF, é configurá-las, todas, "sem licenças", reservando todos os direitos a quem arcou com custos intelectuais e econômicos da sua produção. E isto pode ser feito acessando: 1 - Configurações da conta; 2 - Conteúdo & Exibição; 3 - Em "Licenciando", fazendo a marcação em todas as três opções, "Licença padrão para suas observações", "Licença padrão para suas fotos" e "Licença padrão para sons", da última opção na qual aparece: "Sem licenças (todos os direitos reservados)". Note que isto protege não somente fotografias e sons como todos os conteúdos das suas observações, ou seja, todos os seus dados, resultados e conclusões. Assim você consegue cuidar do uso que pode ser feito do conteúdo que produziu, o seu conteúdo, exceto naquilo que diz respeito aos direitos concedidos ao iNaturalist em seus Termos de Serviço. E o iNaturalist usa seus dados, por exemplo, para produzir informações resultantes de compilados massivos, como gráficos ou mapas e suas fotografias para a alimentação de algoritmos de inteligência artificial que ajudam a aprimorar os processos de identificações automáticas de espécies.

Então alguém que deseja usar o que você produziu pode questionar seu posicionamento de reservar todos os direitos, alegando que você não quer que sua produção contribua com o conhecimento sobre a biodiversidade. Mas não se deixe impressionar por este argumento, pois ele não é verdadeiro. Primeiro porque sua publicação no iNaturalist está em acesso aberto e isso por si só já é contribuição para o conhecimento. Segundo, como acesso aberto não é sinônimo de qualquer uso liberado, basta que quem tem o desejo de fazer uso do seu trabalho, solicite a sua autorização. Então você avalia se o uso será ou não compatível com seus valores e decide por autorizar ou não. E mais, sua produção é importante contribuição para o aprimoramento continuado das identificações automáticas de espécies. Então você pode resistir sem peso de consciência a este assédio.

Sim, sofremos assédio e pressão, de pessoas que não alcançam por si os resultados que alcançamos e querem fazer uso do que produzimos em seus nomes, sem precisar nos solicitar, nem informar e nem atribuir crédito a autoria original. E este assédio inclui críticas à ciência cidadã e seus métodos independentes, à produção de quem publica em plataformas de ciência cidadã sem se subordinar antes a um cientista profissional, ao fato de que reservamos todos os direitos sobre nossos dados e fotografias tornando usos não consentidos criminosos, e sofremos ainda abusos, como o de simplesmente se apropriarem de nossa produção publicando em seus nomes, sem que sejamos sequer citados nominalmente. Configurar todos os direitos reservados é apenas uma defesa neste cenário, uma tentativa de ter um uso justo do que fazemos com tanta dedicação.

E é aqui que surge o argumento de que não adianta publicar no iNaturalist "sem licença" nenhuma, porque mesmo assim aqueles que deveriam ser as maiores referências de ética científica da sociedade, simplesmente se apropriam sem consentimento do que produzimos, apagando nossos nomes. E este argumento até tem razão de ser. Só no meu caso, que tenho a integralidade das minhas publicações no iNaturalist sem nenhuma licença de uso, já sofri uso de fotografias não autorizadas em livro publicado por pesquisadores e vendido na Europa com crédito incorreto, em sites de divulgação científica, em diversas formas de publicação e até de dezenas de dados inéditos, repito, sem nenhuma licença de uso, usados em listas de espécies com propósito de inventariamento, sem meu consentimento e sem nem a atribuição do devido crédito autoral. E não sou a única vítima deste tipo de abuso, muitos dos colegas de observação de biodiversidade relatam que seus direitos autorais são violados de diferentes formas.

Mas é aqui que, mesmo vitimados, precisamos serenidade e confiança. Trabalhos, quaisquer que sejam, por quem quer que sejam feitos, que usam conteúdos sem licença, sem consentimento e sem nem os créditos aos autores legítimos, são prova, em si mesmos, de má conduta. E seus autores pesquisadores se revelam para a sociedade, no seu próprio fazer científico, como o são seus atos: abusivos, desumanos e até criminosos. São precioso exemplo do que a sociedade não deseja para a ciência.

Quando falamos de conteúdos produzidos no Brasil, por brasileiros, usados indevidamente por brasileiros no Brasil, em publicações brasileiras, vale a nossa lei no. 9.610 de 1998, de direitos autorais, que, conforme a convenção de Berna da qual o Brasil é signatário, estabelece como direito moral do autor o de ter sua autoria reconhecida por seu nome, pseudônimo ou apelido (Art. 24, II). A violação de direitos morais neste caso tem previsão no Código Penal, Art. 184, e entre as punições ali previstas, está a detenção do criminoso de três meses a um ano. E constatamos pesquisadores se esquivarem do risco de punição prevista em lei, inviabilizando a defesa das vítimas, pelo recurso da inexatidão metodológica. Um exemplo é quando estes atores citam apenas a plataforma de ciência cidadã enquanto escondem os conteúdos e autores originais delas usados ao misturar indistintamente seus resultados com os de coleções científicas. Mas mesmo assim, a prova da má conduta científica do uso de conteúdos sem a citação de seus autores, passíveis ou não de identificação, permanecerá irreversivelmente manchando seu histórico de cientista. E esta mancha na carreira não deixa de ser uma forma de punição deontológica em defesa das vítimas, que foi assegurada de forma prévia justamente pela configuração dos conteúdos usados, com todos os direitos reservados.

As plataformas de ciência cidadã ainda são algo novo no mundo da ciência, e funcionam de maneira muito diferente dos ambientes tradicionais nos quais os cientistas tinham todo o poder sobre dados primários e a segurança das portas fechadas para fazer seu uso. No ambiente do iNaturalist os dados não são primários, então não é possível usar indevidamente suas publicações, sem consequências para a credibilidade de quem faz esse uso.

Serão necessários muitos erros, muitos abusos e um bom tempo de adaptação a esta nova forma transparente e participativa de fazer ciência, até que o respeito se torne o único caminho, se não pelo desejo de agir eticamente, por não se querer o currículo manchado irreversivelmente pela má conduta científica.

O lado positivo de tudo isso é que apesar desses exemplos desumanos, já existem profissionais sérios, que fazem contato, solicitam uso e realizam suas publicações incluindo o que nós produzimos, de maneira limpa, bem identificada, transparente, e fazendo questão de citar todos os nomes dos autores originais. Alguns até têm a generosidade de nos convidar a parcerias na autoria de artigos que incluem nossos resultados. São pessoas que poderiam estar se aproveitando de suas posições encasteladas em instituições científicas tradicionais para justificar abusos, mas escolheram por conta própria simplesmente reconhecer e respeitar o valor da ciência cidadã. Estes são os cientistas profissionais capazes de alimentar nossas esperanças. Afinal, são eles que, mesmo em poucos, se apresentam para a sociedade como verdadeiros exemplos da conduta científica ética que almejamos. São eles que, inevitavelmente, ocuparão a posição de referência lúcida, altruísta e digna para o futuro da salutar e produtiva relação entre a ciência cidadã e a profissional.

Publicado originalmente em: https://terra-das-borboletas.blogspot.com/2023/07/publicacoes-sem-licenca-de-uso-no.html

Publicado el 07 de julio de 2023 a las 06:19 PM por zamoner_maristela zamoner_maristela | 0 comentarios | Deja un comentario

06 de julio de 2023

A CIÊNCIA CIDADÃ PRECISA DE VALIDAÇÃO PROFISSIONAL? NÃO.

Por Maristela Zamoner

A resposta, “NÃO”, que acompanha o título deste artigo, e todo o delineamento que segue, abrangem especificamente a atuação do cientista cidadão independente, cujo perfil foi detalhado no artigo intitulado “Cientista cidadão que publica em plataformas de ciência cidadã não é cientista de fato?”. Neste citado texto, entre outras questões, demonstramos que este cientista cidadão não publica em plataformas de ciência cidadã para que suas descobertas sejam usadas por cientistas profissionais sem o crédito da autoria original. Lembremos que os interesses dos cientistas profissionais têm relação com o produtivismo científico, que envolve a relação entre quantidades de publicações científicas, aumentos salariais, vantagens carreiristas e poder sobre o acesso a recursos para fins do fazer científico. Neste cenário, as plataformas de ciência cidadã podem parecer uma oportunidade para que estes profissionais produzam mais e com maior velocidade, pela redução, ou mesmo eliminação, de esforços e tempo que habitualmente dedicavam à produção de informações originais e inéditas para suas publicações. E cientistas profissionais manifestam interesse crescente em usar para seus fins a produção desta ciência cidadã independente.

Estabelecido este início, vejamos mais algumas das razões que fundamentam esta resposta "NÃO", sem perder de vista a seguinte questão: a quem interessa mais estabelecer a necessidade de que cientistas profissionais validem o trabalho de cientistas cidadãos independentes?

Esta discussão precisa ser construída com base em alguns aspectos históricos da ciência cidadã e sua relação atual com a ciência profissional. Então vamos a eles. Ao longo dos últimos séculos a ciência cidadã, que é também fundadora da ciência, foi retirada da sua própria prática por mecanismos desenvolvidos pela ciência profissional. Entre estes mecanismos estão os que sublaternizaram o cientista cidadão a um profissional, e aqueles que estabeleceram regras claras de completa exclusão. São exemplos deste processo as publicações em acesso fechado, o impedimento de consulta a materiais como os de coleções biológicas públicas (muitos vindos de esforços empenhados com recursos privados de cientistas cidadãos no passado), a impossibilidade de participação na geração de dados e de suas análises e, em muitos casos, o impedimento de atuação por falta de vínculo institucional e titulação acadêmica.

A ciência cidadã quase desapareceu sofrendo esta continuada e severa inanição, forçada pela imposição de uma pesada exclusão científica institucionalizada. O espaço de participação cidadã no âmbito da ciência profissional deixou de ter a existência que tinha quando a Ciência nasceu. E é depois de séculos que a ciência cidadã renasce mais forte do que nunca, com crescentes milhões de adeptos independentes cada vez mais engajados. No ano de 2014 a expressão "Ciência Cidadã" apareceu pela primeira vez no dicionário Oxford, com o seguinte significado: "citizen science n. scientific work undertaken by members of the general public, often in collaboration with or under the direction of professional scientists and scientific institutions". Para os fins deste artigo é de especial relevância o significado da palavra "often", que em inglês contém a ideia de "muitas vezes". No citado conceito, não foi usada outra palavra, como "always", admitindo-se, portanto, que a ciência cidadã pode ser exercida ou dirigida, em sua completude, sem a colaboração ou o direcionamento de cientistas profissionais, bem como, sem uma tutela institucional. Assim, desde este primeiro conceito proposto em um dicionário, a ciência cidadã independente foi reconhecida. Esta variação de fazeres em ciência cidadã vem sendo discutida sob terminologias como "Top-down" (TD) ou "De cima para baixo", quando uma instituição científica ou um cientista profissional usam o trabalho de voluntários para coletar dados conforme seus interesses, "Bottom-up" (BU) ou "De baixo para cima", quando a ciência é feita pelos interesses de cientistas cidadãos que têm um envolvimento maior em mais etapas da metodologia científica, e "Extreme citizen science", ou "ciência cidadã extrema", quando cientistas cidadãos atuam de maneira completamente independente. De qualquer forma, é reconhecido, inclusive na literatura, este fazer científico independente do cientista cidadão, que também abordamos no livro "Biodiversidade e Ciência Cidadã", publicado em 2021 pela Comfauna Livros. Condicionar a ciência cidadã extrema à necessidade de uma validação profissional é provocar seu extermínio.

Neste recorte inicialmente proposto aqui, apontamos como tecnologias destacadamente relevantes, que viabilizaram este renascimento, as fotografias digitais de biodiversidade, gravação de sons, e as plataformas de ciência cidadã, estas últimas, que criaram um espaço democrático para o fazer científico completo, sem discriminação de vínculo institucional, titulação ou outro.

E como toda ciência legítima, a cidadã da qual falamos aqui, também criou seus próprios mecanismos de avaliação e de validação, que seguem se aprimorando a cada dia em favor da poderosa estruturação de redes científicas que fortalecem cada dia mais a excelência da exatidão metodológica. Entre os principais mecanismos de validação estão a completa transparência e o acesso tanto aberto quanto participativo, que não excluem nem mesmo cientistas profissionais. Então, embora a ciência cidadã NÃO deva ser obrigatoriamente validada pela profissional, seus mecanismos de validação participativa não discriminam o cientista profissional. Basta que o interessado em validar resultados e análises fruto do trabalho de cientistas cidadãos participe sempre que quiser, em igualdade de condições com qualquer outro que se submete às políticas democráticas das plataformas de ciência cidadã. É preciso entender que ali não será possível atuar impositivamente, é lugar de diálogo público, de argumentação e apresentação de fontes para que as análises de resultados sejam construídas coletivamente e sem discriminação, assegurando que as validações metodológicas e de resultados sejam participativas e, acima de tudo, transparentes. É o lugar para se solicitar o uso de conteúdos autorais, para pedir o consentimento, para obter as informações a fim de citar cientificamente o que ali está publicado. Nas principais plataformas de ciência cidadã, títulos de graduação ou pós-graduação, ou um vínculo institucional, não tornam ninguém mais importante que os demais. E se tornassem, é muito provável que estas plataformas não teriam alcançado o sucesso que alcançaram, nem em quantidade de cientistas cidadãos atuantes, e nem em excelência de resultados. O que realmente importa nessas iniciativas, é a contribuição efetiva que cada um é capaz de trazer. Esta estratégia de ciência cidadã extrema, independente, e que vem gerando resultados de valor científico inquestionável, não é proporcionalmente abordada pela literatura profissional. E isto é crítico se considerarmos que a ciência cidadã extrema avança reunindo crescentes milhões de cientistas cidadãos que atuam com autodidatismo, autonomia, liberdade e absoluta independência. Será que uma das razões pelas quais não seja estudada proporcionalmente em seu caráter original se deva ao fato de que sua abrangência na população, e sua transparência metodológica, ainda não tenham sido alcançadas e nem compreendidas pela ciência profissional?

O cientista profissional, muitas vezes, não está acostumado a ambientes abertos e democráticos, tão diferentes da clausura de gavetas e gabinetes seguramente lacrados. Talvez por isso tenha a dificuldade que vemos em lidar com as críticas fundamentadas que cientistas cidadãos e outros interessados fazem, inclusive sobre falhas metodológicas e até mesmo sobre correções de identificações profissionais de espécies.

É importante frisar aqui que as tecnologias de plataformas de ciência cidadã seguem continuamente seu caminho, melhorando mais e mais seus processos participativos de validação, adequados aos seus interesses e objetivos. Por isso, em geral, o cientista cidadão que publica nestas plataformas não tem necessidade de submeter sua produção a nenhuma outra forma de validação externa, especialmente se não for democrática, transparente e participativa. Para um cientista cidadão independente pode ser mais interessante, por exemplo, ter acesso para checar por si cada conhecimento do seu interesse, de forma autodidata, ampliando as possibilidades das análises de seus resultados, do que receber uma validação externa de alguém institucionalizado em outra esfera, e que tem interesses diferentes dos seus. Ao mesmo tempo, o cientista cidadão que ainda assim tem alguma necessidade de subordinar seu trabalho a uma validação profissional externa, é livre para fazê-lo quando quiser. Não há motivo para que se estabeleçam e se reforcem regras, normas, ideias ou mesmo conceitos de ciência cidadã que condicionem, direta ou indiretamente, a validade do trabalho de um cientista cidadão à aprovação de um profissional. Até porque estabelecer este tipo de "valor", seria fomentar mais mecanismos de subalternização que, no passado, excluíram o cientista cidadão da ciência da qual foi fundador.

Não há como negar que estas inovações da ciência cidadã e suas estratégias próprias de validação de métodos e resultados foram eficientes o bastante ao ponto de gerar produtos científicos capazes de acender interesses até dos mais resistentes e conservadores cientistas profissionais. Conforme todo este trabalho suado e caro de cientistas cidadãos ganhou forma ao longo dos anos, e credibilidade, começaram a surgir publicações de cientistas profissionais fazendo uso desta produção científica como se lhes pertencesse, sem consentimento, sem diálogo prévio, sem transparência e sem nem ao menos, citação dos legítimos autores. Estas condutas autoritárias, impositivas e desumanas foram discutidas no artigo "COMO FAZER USO LEGAL E ÉTICO DAS PUBLICAÇÕES DE PLATAFORMAS DE CIÊNCIA CIDADÃ?". Quem não se sente confortável com esta transparência participativa das plataformas de ciência cidadã, não é obrigado a participar. Mas precisa ser ético o suficiente para não retirar resultados dali, publicando-os em seu nome, sem qualquer contrapartida para os autores originais e para a plataforma. Fazer uso do trabalho do cientista cidadão em favor de um terceiro, sem consentimento e tirando-lhe o direito autoral moral do que produziu, nos faz pensar no significado da palavra servidão. Isto é uma falha ética e também metodológica grave, na qual muitos cientistas profissionais vêm incorrendo, sem oportunidade transparente de correção e nem de defesa daqueles que têm seus direitos autorais morais violados. Esta é uma conduta desumana mais grave, quando a condição é imposta arbitrariamente por um funcionário público no exercício de suas funções, ou a pretexto de exercê-las.

Esta realidade da violação de direitos autorais, naturalmente, provoca desconforto e até revolta na comunidade de cientistas cidadãos independentes, que se sentem abusados e discriminados. Algumas das consequências que assistimos são perfis inteiros com todos os registros de biodiversidade sendo apagados das plataformas, na tentativa de proteção contra o uso desumano de seus conteúdos autorais. Outra consequência é o comprometimento do acesso aberto pela ocultação de dados como georreferenciamento, que obrigam interessados no uso das publicações a solicitar consentimento dos autores. Crescem os que configuram suas publicações com "Todos os direitos reservados", apesar de mesmo assim sofrerem abusos por parte de cientistas profissionais que simplesmente publicam os resultados em seus nomes, citando apenas a plataforma, e excluindo os nomes dos autores originais. Como vemos, são contaminações de pressões e vícios da ciência profissional sobre a ciência cidadã. Quem perde é a sociedade.

Infelizmente o cientista cidadão raramente é citado por um cientista profissional que usa suas publicações autorais feitas em plataformas de ciência cidadã. E isto surpreende no que diz respeito à baixa qualidade de estudos neste perfil, pois a correta citação da fonte é algo valorizado pela própria ciência profissional. Quando os autores legítimos não são citados, apenas a plataforma de ciência cidadã, comete-se ainda um erro científico grosseiro equivalente a citar um periódico científico sem citar autor e artigo dele utilizados.

Um cientista cidadão ser incluído de forma justa entre os autores dos artigos que usam suas publicações de maneira determinante para a obra, é ainda algo mais incomum. Mas felizmente produções que unem igualmente cientistas cidadãos e profissionais como autores, começam a despontar como as melhores experiências de parcerias nascidas dos interesses de profissionais éticos pelo uso de publicações das plataformas de ciência cidadã. A expectativa é que figurem como referência justa e inspiradora para iniciativas futuras.

Depois de todo este histórico, notamos que esta caminhada ganhou contornos de dívida histórica que cientistas profissionais contraíram com cientistas cidadãos ao longo dos últimos séculos de exclusão científica. Não podemos esquecer que estes cientistas cidadãos não atuam com o objetivo de entregar o que produzem para que cientistas profissionais publiquem em seus nomes. Estes cientistas cidadãos não estão manifestando amplamente qualquer necessidade de terem seu trabalho validado fora das plataformas nas quais publicam sua ciência. E menos ainda atuam para que suas produções estejam a serviço de encorpar currículos visando carreirismo ou outras vantagens que abrangem melhorias econômicas para terceiros. Para os interesses dos cientistas cidadãos independentes, portanto, a obrigatoriedade de sobrepor uma validação postiça para seu trabalho, feita por interesse profissional, pode se parecer muito mais com uma estratégia de dominação do que com uma necessidade científica.

Apesar de toda esta realidade, também é muito importante reconhecer que atuações conjuntas respeitosas e igualitárias, que congreguem benefícios e objetivos comuns, podem ser saudáveis para estes dois tipos de cientistas e para a sociedade. Mas para que isso se realize de forma plena, é preciso empoderar a ciência cidadã independente, apoiá-la, fortalecê-la, tratá-la como ciência que é, assegurando sua natureza autodidata, sua autonomia, sua igualdade posto que é, talvez, o único contraponto à hegemonia da ciência profissional.

Assim, cientistas profissionais que querem realmente apoiar a ciência cidadã, não deveriam fazê-lo tentando subjugá-la novamente em um claro retrocesso histórico. Mas seria legítimo começar participando honestamente de validações em igualdade de condições nas plataformas de ciência cidadã, se dedicando para que os conhecimentos já produzidos ganhem o acesso aberto, investindo em projetos de democratização de coleções científicas entre outros e encerrando estratégias que amarrem sua atuação a uma instituição ou a uma titulação acadêmica. Mas principalmente, passando a respeitar o cientista cidadão como cientista de fato que ele é, citando seu nome quando fizer uso de sua produção. As parcerias entre cientistas profissionais e cidadãos, são muito bem-vindas e toda a sociedade pode se beneficiar delas. Mas é imperioso que sejam forjadas de forma ética, igualitária, justa, equilibrada, democrática e transparente.

Artigo publicado originalmente em: https://terra-das-borboletas.blogspot.com/2023/07/ciencia-cidada-precisa-validacao.html

Publicado el 06 de julio de 2023 a las 10:32 AM por zamoner_maristela zamoner_maristela | 2 comentarios | Deja un comentario

30 de junio de 2023

COMO FAZER USO LEGAL E ÉTICO DAS PUBLICAÇÕES DE PLATAFORMAS DE CIÊNCIA CIDADÃ?

Por Maristela Zamoner

Por mais incoerente que possa parecer, existem profissionais que defendem o uso de conteúdos de plataformas de biodiversidade, sem a citação dos autores originais. Não só defendem, como fazem. Isto ocorre em publicações desumanas, enquanto, por outro lado, os periódicos científicos mais sérios já exigem para submissões que usam dados desses conteúdos, não só a citação de autores originais, como sua autorização. Por isso é necessário abrir esta discussão com fundamento nas questões de direitos autorais nacionais e internacionais, de ética e dos interesses dos atores científicos envolvidos.

Embora existam casos nos quais se perceba um cuidado ético, é inegável o aumento voraz de exemplos de má conduta científica nesta seara. Isto abrange desde o uso ilegal, que atropela as definições de copyright apontadas nas próprias plataformas de ciência cidadã, até o uso antiético, que afronta os interesses dos autores originais. O problema ético se torna inconteste quando observamos a reação de descontentamento de vários cientistas cidadãos vitimados por abusos sobre sua produção.

É aqui que a discussão não pode se furtar das reflexões:

  1. O autor de plataforma de ciência cidadã quer que seu trabalho seja publicado em nome de outro, sem o crédito a autoria original?
  2. Quando conteúdos de plataformas de ciência cidadã interessam ao ponto de serem usados em publicações profissionais, qual seria a razão para a exclusão proposital do nome do autor original?

A fim de propor uma abordagem inicial sobre esta temática, pontuaremos aqui duas questões. A primeira trata de dois dos tipos de publicações que podem ser obtidos em plataformas de ciência cidadã e biodiversidade. A segunda, sobre o uso destas publicações por terceiros.

Sobre dois tipos de publicações em plataformas de ciência cidadã

Quanto aos tipos de publicações em plataforma de ciência cidadã, um deles é aquele feito por pessoas que apresentam resultados de sua atuação científica, alcançados com empenho e recursos próprios. Cada uma destas publicações têm um endereço eletrônico único, autor definido e um conjunto de conteúdos intelectuais produzidos originalmente. Isto, em geral, abrange a publicação de uma fotografia, ou de um som e, muito mais do que isto, dos vários outros conteúdos indissociáveis, como local, data, equipamento utilizado e conclusões de análises, entre elas, sobre o reconhecimento taxonômico. Estas publicações também podem abranger a participação de outras pessoas no aprimoramento dos resultados. Pessoas que discutem abertamente desde as identificações de espécies até conteúdos de caráter ecológico ou mesmo ético, e o fazem no lugar ético criado para isto, a plataforma.

A existência dos direitos autorais nestes casos é inquestionável e estabelece o sujeito que ali publica como legítimo AUTOR. As próprias plataformas, em geral, apresentam claramente a configuração padrão destes direitos, caracterizada sob o código CC-BY-NC, da seguinte forma:

“Você tem o direito de:
Compartilhar — copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato
Adaptar — remixar, transformar, e criar a partir do material
O licenciante não pode revogar estes direitos desde que você respeite os termos da licença.
De acordo com os termos seguintes:
Atribuição — Você deve dar o crédito apropriado, prover um link para a licença e indicar se mudanças foram feitas. Você deve fazê-lo em qualquer circunstância razoável, mas de nenhuma maneira que sugira que o licenciante apoia você ou o seu uso.
Não Comercial — Você não pode usar o material para fins comerciais.
Sem restrições adicionais — Você não pode aplicar termos jurídicos ou medidas de caráter tecnológico que restrinjam legalmente outros de fazerem algo que a licença permita.”

Entretanto, embora esta seja a configuração padrão de direitos autorais, é imperioso observar cada caso, pois muitos autores optam por outro tipo de configuração para suas publicações, seja aumentando ou reduzindo direitos de uso. Isto pode variar desde disponibilizar sua obra em domínio público, até o estabelecer de TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. E com o avanço de usos ilegais ou antiéticos nesta área, é crescente o número de pessoas que publicam em plataformas de ciência cidadã configurando TODOS OS DIREITOS RESERVADOS.

Um outro tipo de publicação abrange conteúdos produzidos pelas próprias plataformas de ciência cidadã, com base no primeiro tipo e conforme seus termos de uso. Um bom exemplo, são os mapas com os pontos dos diversos registros de biodiversidade. Este é um tipo de resultado ali publicado, que não foi produzido diretamente pelos autores, mas pelas plataformas em si. Então, são da autoria da plataforma, com autorização dos autores cujos dados foram utilizados. Algumas plataformas geram gráficos e outros resultados de análises coletivas, que também são de sua autoria.

Como usar publicações de plataformas de ciência cidadã

A Dra. Gisele Truzzi, especialista em Direito Digital orienta em seu artigo “Direitos autorais e internet: como usar conteúdo de terceiros sem problemas”, que para um uso correto é necessário atentar a alguns pontos. A primeira orientação da especialista é: “Observar se há referência específica a algum tipo de licença ou a menção de "direitos autorais reservados"”. E as maiores plataformas de ciência cidadã apresentam o tipo de licença em todas as suas publicações. A segunda orientação é “Constatado em que local o conteúdo está hospedado e nome do autor, não havendo vedações para o uso desejado, cite a fonte (link exato e data de acesso) e mencione o autor corretamente.” A autora finaliza com maestria: “Portanto, tenha muita atenção ao utilizar materiais de terceiros para criação de seu conteúdo. Verifique as condições permitidas pelo autor para seu uso, faça as devidas menções aos créditos e à fonte; solicite autorização específica caso necessite. Assim você evitará problemas, constrangimentos e infrações legais. Afinal, ninguém quer ser lembrado por plágio, mas, sim, pelo conteúdo original que criou.”

Como vimos, é possível usar uma publicação de plataforma de ciência cidadã com configuração padrão de direitos autorais, desde que se atribua o crédito da autoria de forma apropriada. E mais, não pode haver uso comercial, por exemplo usando a publicação em um livro que será vendido ou em um periódico científico que será explorado comercialmente. Além da configuração internacional de copyright que as plataformas de ciência cidadã atribuem às publicações ali feitas pelos autores, as publicações autorais produzidas no Brasil são protegidas também pela Lei 9610/98, cujo Art. 24 estabelece como direito do autor: II - o de ter seu nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anunciado, como sendo o do autor, na utilização de sua obra;

O uso ético de cada tipo de publicação das plataformas de ciência cidadã deve seguir um padrão bem conhecido no ambiente científico tradicional, que preconiza a citação do seu autor e data de publicação com a inclusão das informações básicas da publicação toda nas referências bibliográficas, ou outro elenco de similar finalidade. Nesta lista de obras utilizadas, em geral apresentada ao final da publicação, cada item referenciado é composto, no mínimo, por AUTOR, TITULO DA PUBLICAÇÃO, VEÍCULO DE PUBLICAÇÃO E DATA. A ordem e forma destes elementos mínimos depende da norma adotada, mas devem ser apresentados quando falamos em um uso metodologicamente correto de qualquer fonte. Como vimos, todos estes elementos existem em cada uma das publicações feitas por seus autores nas maiores plataformas de ciência cidadã, não falta nada para que sejam devidamente citados. No caso de publicações geradas pela plataforma, cabe a citação da própria plataforma como autora, com as referências incluindo os demais elementos citados.

A própria plataforma iNaturalist orienta que o uso de suas publicações deve ser feito com a devida citação: “[Observer name]. [year of posting to iNaturalist]. iNaturalist observation: [url for observation]. Accessed on [date of access]” (https://www.inaturalist.org/pages/help#science1). Estão entre as que devem ter sua autoria citada nominalmente em qualquer circunstância de uso, independente das quantidades de dados abrangidos, de quem faz esse uso e para quais finalidades, as publicações configuradas no iNaturalist com “Todos os direitos reservados”. Os conteúdos destas publicações não se integram automaticamente ao GBIF - Global Biodiversity Information Facility que, conforme suas políticas, admite usos em quantidades com citação coletiva. Justamente por isso, cresce a cada dia o número de pessoas que define "Todos os direitos reservados" como configuração para as publicações de suas produções nesta plataforma.

Quando um profissional faz uso das publicações de plataformas de biodiversidade para construção de listas de espécies, ou inventários publicados em seu nome, precisa cuidado extra. Listas de espécies são de destacado interesse para cientistas cidadãos, logo, a questão ética aprofunda sua relevância. Quando uma espécie está na lista em função de uma ou mais publicações obtidas apenas em plataformas de ciência cidadã, seus autores devem ser citados, ou, ao menos, o autor do primeiro registro. A exclusão do nome deste autor, além de erro científico grosseiro que resulta em ciência de baixa qualidade, é antiética e desumana por afrontar algo importante para os detentores dos direitos autorais originais.

Lembremos que uma publicação em plataforma de ciência cidadã não tem o mesmo caráter jurídico de um exemplar de biodiversidade coletado e tombado em uma coleção. Enquanto este último tem um coletor, o primeiro tem um autor de obra intelectual protegida, que detém direitos autorais. Quando se publicam listas de espécies com base em conteúdos de uma coleção científica, cada espécie listada tem um coletor. Quando uma espécie de determinada lista tem origem em um registro publicado em plataforma de biodiversidade, tem um autor. Juridicamente, coletor é diferente de autor. Autores têm direitos autorais protegidos por lei e pela convenção internacional de Berna, da qual o Brasil é signatário. Coletores não são autores do ponto de vista legal. Os direitos de autor são irrenunciáveis (Art. 27, Lei 9.610/98). Isso significa que nem o próprio autor pode renunciar ao direito de crédito da autoria daquilo que produziu.

Nem usos de grandes quantidades de publicações destas plataformas são justificativas aceitáveis para omissão proposital dos autores. Uma vez que o interesse em usar a propriedade intelectual que não lhe pertence é do profissional, é este último, e o respectivo veículo de publicação, que devem encontrar soluções éticas para viabilizar o que desejam a fim de atingir seus objetivos. Usar produção de conteúdo autoral sem atribuir crédito, além de não ser aceitável, pode ainda se constituir violação de direitos autorais, portanto, crime. No Brasil a violação de direitos autorais é prevista no Código Penal sob pena que inclui até a detenção do criminoso.

É fato que cientistas profissionais aumentam vantagens salariais, benefícios para suas carreiras, facilidades de acesso a recursos relacionados à prática científica, conforme crescem os números de publicações em seus currículos. Este mecanismo todo, muitas vezes referido como produtivismo científico, tem sido alvo de críticas procedentes. É também apontado como responsável pelo crescimento mundial das retratações de artigos científicos por fraudes e má conduta científica. Nem as mais conceituadas revistas do planeta têm escapado desta realidade ao sofrer estas retratações. Uma vez que o sistema prevê aumentos de remuneração com certa proporcionalidade aos aumentos de publicações, é esperado que cientistas profissionais tenham muito interesse em publicar cada vez mais e mais rápido. Antes um cientista profissional precisava empenhar tempo na coleta de dados originais. Agora, vê nas plataformas de ciência cidadã uma forma de encurtar este caminho usando o que outros produziram. A questão é que a atuação deste cientista cidadão aqui em tela, não é de um coletor de dados, muito menos a serviço dos interesses de um profissional cujo avanço na carreira depende de encorpar currículos. O que este cientista cidadão faz, como já discutido, é fruto de um trabalho intelectual autoral, original, integral e independente.

É preciso enfrentar com realismo o fato de que interesses destes cientistas cidadãos não coincidem com interesses destes cientistas profissionais. Cientistas cidadãos pagam para fazer suas publicações. Seus interesses são muito diferentes daqueles de um cientista profissional que recebe para fazer ciência, e potencialmente recebe mais quando publica mais. Se o segundo quer fazer uso da produção do primeiro para encurtar o caminho a fim de alcançar seus objetivos, é razoável que haja humanidade, respeito às leis, à ética e aos interesses dos autores originais.

Uma casa de vidro transparente não é autorização para que quem quiser se aproprie de forma não consentida do que há nela. E as plataformas de ciência cidadã são casa que abriga propriedade intelectual de milhares de cientistas cidadãos. Se o uso de seus conteúdos fosse totalmente livre, não haveria a configuração padrão de copyright que há. Nossos dicionários atribuem termos para o ato de se apropriar de forma não consentida de algo que é de outro, e estes termos não condizem com a boa caminhada científica.

No meio destas duas formas de fazer ciência, profissional e cidadã, há algo em comum que pode ser um universo de possibilidades saudáveis para todos. A atuação conjunta destes dois atores da ciência, em equilíbrio e igualdade, respeitando interesses e necessidades de ambos, pode ser muito promissora para o conhecimento da biodiversidade. Felizmente as primeiras empreitadas exemplares de cientistas profissionais já começam a surgir, como uma joia rara. São publicações que citam todos os nomes de cientistas cidadãos que tiveram seus trabalhos ali usados. Isso revela respeito humano básico, qualidade científica e ética. Em determinados casos, quando a produção de cientistas cidadãos foi determinante para o artigo produzido por iniciativa de um profissional, a autoria chega a ser conjunta. Este é um tipo de exemplo que deve inspirar empenhos científicos atuais e futuros. É caminhada humana, ética, limpa, honesta, que valoriza a ciência cidadã como merece e atribui a seriedade necessária à ciência como um todo.

Fonte citada: Truzzi, Gisele. Direitos autorais e internet: como usar conteúdo de terceiros sem problemas. Plataforma Consultor Jurídico, CONJUR. 24 de agosto de 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-ago-24/gisele-truzzi-direitos-autorais-internet

Publicado originalmente em: https://terra-das-borboletas.blogspot.com/2023/06/como-fazer-uso-legal-e-etico-das.html

Publicado el 30 de junio de 2023 a las 12:31 PM por zamoner_maristela zamoner_maristela | 0 comentarios | Deja un comentario

15 de junio de 2023

Cientista cidadão que publica em plataformas de ciência cidadã não é cientista de fato?

Atualizado em 14 de novembro de 2023.

Cientista cidadão que publica em plataformas de ciência cidadã não é cientista de fato?

Nos últimos anos o debate sobre o significado de expressões como ciência aberta e ciência cidadã se intensificaram muito. Seus diferentes conceitos abrangem profundas discussões e um novo universo deste conhecimento começa a se construir.

Aqui faremos um recorte, concentrado na atuação de um perfil específico de cientista que faz publicações consistentes em plataformas de ciência cidadã e biodiversidade. Este recorte se justifica por vários motivos. Entre eles, por terem sido estas plataformas que permitiram a qualquer interessado, o pleno desempenho das atividades científicas com autonomia e independência, providenciando uma oportunidade livre de inclusão científica nunca vista antes. Estas iniciativas protagonizam de forma brilhante a discussão aqui proposta.

Vejamos mais analiticamente como este perfil de cientista cidadão conduz sua jornada científica e um pouco da ética do uso de suas publicações por cientistas profissionais.

Primeiramente, este cientista cidadão que publica em plataformas de ciência cidadã, em geral, não tem vínculo institucional e o que faz, salvo poucas exceções, não é remunerado. Os termos que fazem referência a este cientista envolvem a palavra “OBSERVAÇÃO” e o exemplo mais conhecido talvez seja do “observador de aves”. Naturalmente, não para por aí. Além de observar, este ator da ciência faz LEVANTAMENTO DOS DADOS de registros feitos por outros observadores. Participa de debates sobre o grupo da biodiversidade no qual se especializou e faz leituras, mesmo de textos científicos. Ele compreende bem as características dos seres que estuda, e entre tantos outros aspectos, sua biogeografia. Ele é capaz de reconhecer uma espécie inédita ou nova para as localidades de interesse, um comportamento atípico ou de destacada importância entre outras questões características do grupo da biodiversidade no qual se especializou.

Segue sua jornada fazendo QUESTIONAMENTO sobre o que observa e lê. Ele adquire material bibliográfico, lê, faz suposições e cria HIPÓTESES envolvendo suas curiosidades. Estas hipóteses podem ser, por exemplo: “Será que naquele local existem outras espécies além destas já conhecidas/publicadas?”, ou “Será possível fotografar as espécies que outros já registraram lá?”. Com base em suas hipóteses, ele define o que fará e como. Sozinho ou em grupo, escolhe locais, as vezes empreende viagens e expedições e não raro adquire equipamentos especiais para os registros que deseja realizar, entre outras iniciativas. Sabe exatamente como realizar as ações necessárias para sanar suas curiosidades. Ele desenvolve assim, a METODOLOGIA que vai aplicar para responder a cada hipótese que formulou.

Vai a campo e volta com seus equipamentos cheios de fotografias, capturas de sons ou outros registros de seu interesse. Na sequência ele tem um grande prazer na ANÁLISE de cada dado que coletou, que obteve em sua EXPERIMENTAÇÃO de campo. Como conhecedor daqueles grupos, ele inicia sua REVISÃO, reconhecendo espécies, consultando bibliografias, bancos de dados de biodiversidade, as vezes consultando outros cientistas, checando biogeografia, procurando registros da espécie feitos por outros cientistas no local ou nas proximidades que visitou, comparando o que encontrou em campo com o que outros obtiveram, abrangendo ainda o conhecimento já estabelecido pela literatura. Ele também conversa muito sobre o que encontrou com outros observadores, pede opiniões, debate detalhes e troca informações.

Assim ele chega a CONCLUSÕES sobre cada registro que fez. E então, tem a alegria de fazer a PUBLICAÇÃO dos resultados de suas revisões, metodologias, experimentações, produção e organização de dados, respostas a hipóteses, análises, trocas de informações, conclusões e tudo mais que envolveu sua caminhada até ali. Ele faz esta publicação em uma plataforma de ciência cidadã da sua escolha, por regra ao acesso aberto, para que o mundo tome conhecimento do que produziu. E ali está uma fotografia ou um som, mas também existem as informações sobre o método utilizado, incluindo até especificação do equipamento, data, georreferenciamento, autor da imagem, reconhecimento da espécie, anotações sobre o registro entre várias outras. Esta plataforma faz o papel de um JORNAL, ou de uma REVISTA de ciência cidadã, ao viabilizar o “tornar público” daquela legítima produção científica.

Agora percebemos que estamos falando de conteúdos científicos produzidos originalmente a partir de legítimo esforço criativo, conteúdos passíveis de citação, posto que têm autor bem definido e veículo de publicação.

Toda esta caminhada que resulta em uma publicação de registro da biodiversidade em uma plataforma de ciência cidadã, é fruto de um esforço criativo que abrange desde a decisão pelo local para realização dos registros, passando pela escolha, desenvolvimento e financiamento de métodos, as vezes criação de equipamentos e técnicas, por todas as análises necessárias até culminar na publicação. Este é um autêntico esforço de criatividade que se expressa nas ações concluídas com a publicação dos resultados de cada registro de biodiversidade em uma plataforma de ciência cidadã. Sem este esforço criativo, não há constatação de nenhum fato.

Notemos que o Art. 7º da Lei 9.610/98 prevê que para que uma obra seja considerada intelectual precisa atender à três requisitos:

  1. Ser a emanação do espírito criador, fruto de processo criativo;
  2. Ter forma sensível;
  3. Ser original.

Pois na publicação de um registro de biodiversidade em uma plataforma de ciência cidadã (materialização pública), a ideia que permitiu este resultado foi criação de seu autor e é original posto que não parte de nenhuma produção anterior. E é por isso que o iNaturalist, por exemplo, fornece ao autor a definição do tipo de proteção que haverá para dados e informações de maneira apartada daqueles da fotografia.

Também há quem empenhe energias tentando desqualificar os resultados deste trabalho de cientistas cidadãos, apontando-os como “fatos”, e por isso, desvinculados de qualquer direito autoral. As ciências biológicas, que abrangem biodiversidade, são consideradas factuais, e nem por isso os autores que produzem conhecimento nesta área, ou fazem descobertas, estão desprovidos de direitos autorais. Se o esforço criativo que resulta em publicações de registros da biodiversidade em plataformas de ciência cidadã não tem proteção autoral porque apenas se resumem a fatos, qual a razão para que a demonstração de qualquer fato apresentado em um artigo científico relacionado à biodiversidade tenha alguma proteção autoral?

Pensemos em um exemplo, a descoberta da estrutura do DNA, ácido desoxirribonucleico. A sua estrutura tridimensional, na forma de dupla-hélice, é um fato. E isto não significa que quem descobriu este fato através de seu esforço criativo, não tenha direito de autor sobre a materialização pública desta descoberta. Da mesma forma quem publica em uma plataforma de ciência cidadã. E se tirarmos o direito de autor sobre os dados produzidos por esta pessoa com base na ideia simplista de que são somente fatos, boa parte dos autores da produção científica do mundo também deveriam ter seus direitos de autor abolidos.

Uma importante referência nesta área é o SIBBr (Sistema de Informação sobre a Biodiversidade Brasileira), plataforma que integra tanto dados quanto informações justamente sobre a biodiversidade. O SIBBr é o nó brasileiro do GBIF (Global Biodiversity Information Facility), que abrange dados do iNaturalist quando os autores autorizam. O terceiro maior contribuidor da plataforma é justamente o iNaturalist, depois do eBird e do Herbário do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. O SIBBr é uma iniciativa do governo brasileiro e o texto apresentado em seu endereço eletrônico não deixa dúvidas sobre o entendimento no Brasil quanto ao direito do autor sobre os dados que produziu (https://sibbr.gov.br/page/termo-de-uso-de-dados.html):

"Direitos autorais associados à Licença de Uso de Dados
A Lei 9.610 de 1998 protege as obras intelectuais, literárias ou científicas. Os dados primários da biodiversidade são considerados descobertas (inéditos) e, portanto, integram a propriedade intelectual e são protegidos como tal. Pelo direito de exclusividade, o autor (pessoa física ou jurídica) é o único que pode explorar sua obra, gozar dos benefícios morais e econômicos resultantes dela ou ceder os direitos de exploração a terceiros. Dessa forma, os conjuntos de dados, ainda que estejam disponibilizados de forma aberta na internet, precisam ter seu uso autorizado pelo autor. (...)

Ao usar ou disponibilizar dados obtidos no sibbr.gov.br, ou ainda disponibilizar qualquer produto derivado desses dados, como uma publicação, o usuário deverá:

  • Reconhecer publicamente o publicador dos dados, além de cumprir os termos e condições da licença associada ao conjunto de dados.
    (...)

  • Entrar em contato com o publicador para obter uma autorização específica, caso o uso que deseja dar aos dados não esteja dentro das condições estabelecidas pelo publicador.
    (...)

  • Manter o tipo de licença selecionada pelo publicador associada a cada um dos registros de ocorrência, caso esses sejam compartilhados para posterior reutilização por terceiros."

Ainda podemos questionar, no caso de uma plataforma de ciência cidadã, que os dados estão publicados em nome do autor que os produziu, perdendo, portanto, o pleno caráter de dados primários. Estão publicados ali por seu autor, são descobertas inéditas, frutos de seu esforço criativo e são originais, portanto, seu uso legal só é possível citando seu autor como se faz com qualquer uso de dado secundário.

Este argumento de que fatos não têm proteção autoral para se referir ao trabalho do cientista cidadão é mais uma tentativa de exclusão, uma forma de discriminação, de inferiorizar e desconstruir o esforço criativo real do cientista cidadão no exercício das descobertas científicas sobre a biodiversidade. Esta narrativa talvez seja conveniente para quem percebe o valor deste trabalho e quer fazer uso dele sem reconhecer quem o produziu.

Quem argumenta que as pessoas produtoras deste conhecimento não têm direitos autorais sobre ele, tem a opção de ir a campo por conta própria, com seu esforço “não criativo”, com seus recursos, apenas verificar fatos sobre os quais ninguém tem direito algum. Para ser coerente, deve disponibilizar em “domínio público” seus resultados, para que seu uso seja feito sem a atribuição de crédito autoral por qualquer interessado e de qualquer forma. Talvez este exercício mental deixe mais claro que cada publicação de registro de biodiversidade feito em uma plataforma de ciência cidadã é fruto de várias decisões resultantes de esforço criativo, e sim, seus autores detêm os direitos autorais que plataformas, como o iNaturalist, indicam para dados e informações, além daqueles relacionados às fotografias. Uma consequência óbvia deste tipo de abordagem abusiva seria a ocultação de dados das observações, obrigando os interessados a fazerem seu uso sem reconhecer quem produziu este conhecimento, a solicitar. Interessa para a sociedade esse tipo de empenho argumentativo, só para excluir cientistas cidadãos do reconhecimento pelo que efetivamente produzem? Qual problema há em citar os nomes das pessoas que produziram determinado conhecimento quando queremos fazer uso dele?

E toda esta trajetória não termina na publicação do registro de biodiversidade. É lá, naquele jornal aberto, a plataforma de ciência cidadã, que quaisquer outros cientistas têm o espaço próprio para a avaliação daquelas publicações, apontamento de novas análises possíveis e, conforme o caso, por exemplo, para proposição de aprimoramentos, inclusive nas identificações de espécies. A plataforma na qual as publicações deste cientista cidadão foram feitas é o local para esta livre e aberta REVISÃO POR PARES e este é o único local digno para esta atividade. Até porque é nele que deve acontecer qualquer correção e até mesmo RETRATAÇÃO das publicações, se comprovados embustes ou erros. Vemos que as plataformas de ciência cidadã e biodiversidade estão desempenhando o papel de um JORNAL científico, se aprimorando em tempo real, ganhando qualidade, confiabilidade, consistência, força, poder de ampla indexação de conteúdos, especialização em identificações de espécies e volume de conhecimento gerado, que a humanidade ainda não tinha tido a oportunidade de experimentar. Isso precisa ser respeitado, o que significa não tirar informações dali sem autorização, não fazer revisões fora destes ambientes sem retornar nada a eles, não realizar publicações que usem estes conteúdos desvinculando seus legítimos autores. Isso é ético, é justo.

É nesta esteira que o cientista cidadão deste perfil dedica tempo de vida, acrescentando conhecimento novo, legítimo e inédito para a ciência, conforme seus interesses que incluem uma atuação cientificamente completa, livre, autodidata, autônoma e independente. Não podemos tratar suas publicações como “dado coletado” que aguarda alguém outro usar em seu nome e para seus fins. Isso seria menosprezar e discriminar um trabalho muito mais elaborado que exigiu empenho intelectual, recursos privados e atuação da plataforma que viabiliza e modera a publicação. Inclusive é necessário reforçar que esta produção abrange obra fotográfica ou sonográfica, cujos direitos autorais são protegidos nacional e internacionalmente.

Ao longo dos anos, este cientista executa repetidamente todas as etapas do método científico necessárias ao fazer científico do seu interesse, promovendo aprimoramentos, melhorando seus métodos e resultados. Isto permite a construção de uma lista de tudo que produziu, que ele chama de life list, algo especialmente relevante para seus interesses. Esta lista é como o CURRÍCULO deste observador da natureza. Assim ele segue acrescentando conhecimento novo, legítimo e inédito para a ciência.

Quando temos compreensão genuína sobre metodologia científica, precisamos ser imparciais o suficiente para reconhecê-la nesta forma independente de fazer ciência. Precisamos admitir que este cientista cidadão realiza plenamente, ao seu modo, todas as etapas do método científico necessárias ao que produz. E isso fica mais difícil de negar quando vemos a cada dia suas publicações interessando mais e mais cientistas profissionais que desejam usá-las. E em uma caminhada ética a concretização deste uso, além de muito saudável, tem potencial de trazer mais resultados em parcerias respeitosamente constituídas.

Nesta realidade já estabelecida, as plataformas de biodiversidade precisam ser vistas com destaque no cenário desta ciência cidadã, ou desta ciência aberta. Estas iniciativas tornaram possível a integralidade da prática científica sem discriminação de vínculo institucional ou de escolaridade, tornando a inclusão científica uma realidade inegável. Elas protagonizam a viabilização da autonomia científica de qualquer interessado, ampliando imensamente o potencial da produção científica mundial.

Por tudo isto, plataformas de ciência cidadã não podem ser vistas como mais uma estratégia que coloca o cientista cidadão na posição de voluntário coletor de dados para outros que gostariam de publicá-los em seus nomes, estratégia que não tem nada de errado, mas é outra. Esta postura extrativista nestes casos, provoca um afastamento entre estes cientistas cidadãos autônomos e cientistas profissionais. E este afastamento é positivo para a sociedade?

A parceria equilibrada entre estes dois atores científicos é muito promissora, desde que ambos sejam beneficiados e tratados como iguais no todo daquilo que se pretende realizar unindo suas ações e resultados. Colocar esta produção do cientista cidadão deste perfil como colaboração subordinada ao cientista profissional, na posição de dados coletados voluntariamente, é uma forma de menosprezo ao seu trabalho, discriminação do seu papel científico, e também é forma de dominação, que não tem razão para se estabelecer. Este cientista cidadão é independente e não tem interesse em simplesmente se submeter entregando a sua obra para outro assinar. Isso é a realidade e não podemos fechar os olhos para ela, muito menos tentar remoldá-la segundo interesses de formatos profissionais. Desrespeitar ou discriminar neste cenário, é desperdiçar uma oportunidade incrível de ver ciência cidadã, ou ciência aberta, e ciência profissional trabalharem em parceria justa, em igualdade, gerando mais resultados importantes para a sociedade.

Cientistas cidadãos que atuam de forma independente e autônoma, construindo suas life lists, são líderes e executores na integralidade de seus próprios projetos de ciência cidadã. De qualquer forma seguirão fazendo sua ciência livremente, conforme seus interesses, produzindo resultados legítimos, cada vez mais organizados, elaborados, qualificados e inegáveis.

Este cientista cidadão quer muito pouco em troca do que faz, reconhecimento da autoria é uma das coisas elementares e éticas que espera, figurar como coautor de toda obra que sem sua produção se descaracterizaria é outra. E cabe lembrar que a cada ano somam-se mais destes cientistas cidadãos, que já são milhares.

Por sua vez, o cientista profissional não é financiador deste cientista cidadão. Mas o inverso, em geral, é verdadeiro. Esta realidade precisa compor o debate sobre esta ciência cidadã, ciência aberta ou qual seja o nome que se venha a definir. Se queremos que a ciência, no fim, seja uma só, composta harmonicamente por diversidade de cientistas e fazeres, precisamos reconhecer e respeitar a autonomia deste cientista cidadão e seus direitos como autor.

Por fim, agradeço especialmente aos observadores de aves e borboletas por tudo que me ensinaram na prática, e ao longo dos anos ímpares de convivência. Uma das lições importantes foi que este perfil de cientista cidadão é pleno, autêntico, autônomo, independente, produtor de ciência legítima, de alta qualidade, digna de reconhecimento e respeito por parte de toda a sociedade. Muito mais do que aquele que se apropria indevidamente do que não é seu, este cientista cidadão é cientista de fato.

Pela bióloga Maristela Zamoner
14 de junho de 2023
Publicação original em: https://terra-das-borboletas.blogspot.com/2023/06/cientista-cidadao-que-publica-em.html

Publicado el 15 de junio de 2023 a las 11:09 AM por zamoner_maristela zamoner_maristela | 4 comentarios | Deja un comentario

12 de junio de 2023

Ciência cidadã, primeiro excluída, agora saqueada

As plataformas de ciência cidadã crescem exponencialmente tanto em registros de biodiversidade quanto em cientistas participantes. Destacam-se os cidadãos que as alimentam, e as vezes encontram ali sua única forma de inclusão científica.

É neste cenário que cada vez mais pessoas se interessam pelos conteúdos destas plataformas. Alguns participam respeitosa e generosamente, contribuindo com registros ou discussões sobre identificações de espécies. Isso favorece a eficiência de toda a rede, trazendo transparência e democratização científicas nunca vistas antes. Há quem se restrinja a assistir esta transformação que vem ocorrendo na sociedade.

Outros recolhem dados dali para suas produções que em algum momento serão adicionadas a seus currículos, servindo para reforçar e ampliar vantagens acadêmicas, melhorias salariais ou mesmo para afirmar posições perante colegas. Entre estes, alguns olham com respeito para os que empenham esforços pessoais alimentando estas plataformas, e de fato os inserem de forma justa e honesta nos processos de produção científica de seu interesse. Outros, porém, extraem silenciosamente informações destas plataformas, as publicam em seus nomes e nem ao menos atribuem a autoria aos legítimos autores. E assim começa a predação das plataformas de ciência cidadã.

É aqui que na área da biodiversidade precisamos diferenciar com muita clareza a natureza jurídica de um exemplar de biodiversidade coletado, tombado em uma coleção científica, de um registro fotográfico e seus dados publicados em uma plataforma de ciência cidadã. Enquanto um coletor de um exemplar físico de biodiversidade não tem o direito autoral sobre esta coleta resguardado em legislação própria, quem fotografa biodiversidade tem.

A Lei no. 9.610 de 1998 é objetiva ao definir em seu artigo 7º que fotografias são obras intelectuais protegidas. Metadados de local e data, por exemplo, são parte integrante da obra fotográfica. O artigo 28 é claro: “cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra (...)”. Segue-se o artigo 29 afirmando que “Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades”. Portanto, registros feitos por cientistas cidadãos são obras intelectuais de suas propriedades e ninguém pode usá-las sem autorização expressa. Diferindo de um bicho coletado que não tem autor, tem coletor.

A coleção de informações sobre os registros de cada autor é sua base de dados, que também está protegida pela mesma lei. Mas mais importante que isso é o fato de que a inserção de registros na plataforma é uma maneira de torná-los públicos. Uma vez publicados, podem ser citados em publicações de outras pessoas, com a natural atribuição da autoria. Isso deixa claro que o acesso aberto não é sinônimo de autorização para uso do que ali está publicado sem crédito de autoria.

Já é tempo para o cientista cidadão entender que não é uma honra ter seu trabalho usado sem nenhuma contrapartida, só porque quem fez esse uso é uma notória autoridade científica profissional ou outrem ovacionado em certos redutos. Não é uma honra, é um abuso.

Nós que publicamos nossas obras intelectuais fotográficas e bases de dados em plataformas de ciência cidadã, estamos sendo SAQUEADOS por pessoas que não respeitam nossos direitos autorais, que atropelam a lei e a ética científica. Em certos casos estas pessoas nem ao menos colaboram com a fonte da qual tiram proveito. Poderiam fazê-lo, por exemplo, contribuindo com registros ou discussões sobre identificações de espécies. Mas apenas pegam para si a produção de outras pessoas que ali colaboram voluntariamente, sem entregar nada em troca.

Chegamos a constatar a publicação de listas de espécies ou inventários que elencam táxons sem informar quais deles se originam de coleções científicas e quais de plataformas de ciência cidadã, mas afirmando que a lista é formada por ambas as categorias de fontes. Este tipo de apresentação de resultados é de pobreza científica, uma vez que não se pode reconhecer a origem dos dados e nem seus verdadeiros autores. Será que alguém acha mesmo correto tratar de forma igual, numa única lista, uma espécie cujo registro vem de um indivíduo tirado do ambiente e outra de um indivíduo que permaneceu nele? São fontes de informação que, do ponto de vista científico, não podem ser simplesmente misturadas como se fossem iguais. Será que isso teria o objetivo de inviabilizar a defesa das pessoas cujos direitos estão sendo violados? Ou seria ignorância sobre bases elementares da ciência?

Enquanto cientistas cidadãos pagam para fazer ciência, alguns tiram vantagem ao se apropriar indevidamente de seus resultados. E o fazem sem oferecer qualquer retorno. Em certos casos nem ao menos reconhecendo a autoria de dezenas de primeiros registros para localidades cujas espécies são listadas.

Quando se deseja usar o que não é sua propriedade, é necessário pedir autorização do autor. E quando não se está disposto a pedir autorização ao autor, e nem citá-lo, deve se restringir apenas ao que tem direito, ao que produziu com seu esforço e com seus recursos, assumindo a realidade quando seus resultados são incapazes de alcançar os de plataformas de ciência cidadã.

Mesmo que os conteúdos destas plataformas não estivessem protegidos em seus direitos, usá-los sem o devido crédito seria conduta que não condiz com os valores da ciência e nem da sociedade civilizada. Esse uso sem crédito viola ainda os princípios internacionais da ciência cidadã, publicados em 2015 pela Associação Europeia de Ciência Cidadã, que é a maior referência mundial atual nesta área.

Não tenho fé em nenhuma pessoa apenas por ser considerada por um grupo como mais importante que os outros. Ser autoridade em dada área para algumas pessoas, não a torna sinônimo de pessoa idônea. O que estamos vendo acontecer nas plataformas de ciência cidadã mostra bem isso. Um cientista cidadão que honra a ciência e sua ética é autoridade muito mais legítima do que qualquer outro que não preze por uma conduta austera.

Neste cenário de abusos concretizados, é uma boa recomendação para os alimentadores de plataformas de biodiversidade e ciência cidadã, que configurem restrição máxima de direitos em seus perfis e reforcem por escrito neles, que qualquer uso de dados só poderá ser feito com a autorização do legítimo autor.

É importante robustecer que a atitude torpe de se apropriar do que é de outro, diz muito mais sobre quem age assim do que as listas de feitos colecionados em seus currículos Lattes.

Esperamos que este artigo sirva de alerta para que publicações futuras não incorram nestas graves faltas éticas e científicas, e que cada dado tirado de publicações das plataformas de ciência cidadã seja sempre referenciado nominalmente em sua legítima autoria.

Por fim, é urgente a reflexão de todos os cientistas sobre as consequências nocivas de publicações que usam conteúdos de outros sem atribuição de autoria. Elas são prova eternizada da má conduta científica que desacredita a lisura da ciência perante a sociedade.

Autoria: Pelos biólogos Deni Lineu Schwartz Filho e Maristela Zamoner
Publicado originalmente em: https://terra-das-borboletas.blogspot.com/2023/06/ciencia-cidada-primeiro-excluida-agora.html

Publicado el 12 de junio de 2023 a las 04:17 PM por zamoner_maristela zamoner_maristela | 3 comentarios | Deja un comentario

07 de junio de 2023

NOTA DE REPÚDIO

O Instituto de Ciência e Tecnologia em Biodiversidade (ICTBIO) manifesta, neste ato, seu repúdio à publicação de quaisquer listas e/ou inventários de biodiversidade sem a devida citação dos nomes de todos os autores dos primeiros registros de cada espécie listada, quando obtidos em plataformas de ciência cidadã.
A instituição considera que tal conduta falta com a ética científica, é predatória e viola os princípios publicados no ano de 2015 pela Associação Europeia de Ciência Cidadã, maior referência internacional na área.
Convidamos todos que entendem a importância desse repúdio a compartilhar esta NOTA, para que alcance a maior quantidade possível de pessoas, ajudando a reduzir tais práticas de exclusão científica em nossa sociedade.
7 de junho de 2023

Publicado el 07 de junio de 2023 a las 05:32 PM por zamoner_maristela zamoner_maristela | 0 comentarios | Deja un comentario