Atualizado em 14 de novembro de 2023.
Cientista cidadão que publica em plataformas de ciência cidadã não é cientista de fato?
Nos últimos anos o debate sobre o significado de expressões como ciência aberta e ciência cidadã se intensificaram muito. Seus diferentes conceitos abrangem profundas discussões e um novo universo deste conhecimento começa a se construir.
Aqui faremos um recorte, concentrado na atuação de um perfil específico de cientista que faz publicações consistentes em plataformas de ciência cidadã e biodiversidade. Este recorte se justifica por vários motivos. Entre eles, por terem sido estas plataformas que permitiram a qualquer interessado, o pleno desempenho das atividades científicas com autonomia e independência, providenciando uma oportunidade livre de inclusão científica nunca vista antes. Estas iniciativas protagonizam de forma brilhante a discussão aqui proposta.
Vejamos mais analiticamente como este perfil de cientista cidadão conduz sua jornada científica e um pouco da ética do uso de suas publicações por cientistas profissionais.
Primeiramente, este cientista cidadão que publica em plataformas de ciência cidadã, em geral, não tem vínculo institucional e o que faz, salvo poucas exceções, não é remunerado. Os termos que fazem referência a este cientista envolvem a palavra “OBSERVAÇÃO” e o exemplo mais conhecido talvez seja do “observador de aves”. Naturalmente, não para por aí. Além de observar, este ator da ciência faz LEVANTAMENTO DOS DADOS de registros feitos por outros observadores. Participa de debates sobre o grupo da biodiversidade no qual se especializou e faz leituras, mesmo de textos científicos. Ele compreende bem as características dos seres que estuda, e entre tantos outros aspectos, sua biogeografia. Ele é capaz de reconhecer uma espécie inédita ou nova para as localidades de interesse, um comportamento atípico ou de destacada importância entre outras questões características do grupo da biodiversidade no qual se especializou.
Segue sua jornada fazendo QUESTIONAMENTO sobre o que observa e lê. Ele adquire material bibliográfico, lê, faz suposições e cria HIPÓTESES envolvendo suas curiosidades. Estas hipóteses podem ser, por exemplo: “Será que naquele local existem outras espécies além destas já conhecidas/publicadas?”, ou “Será possível fotografar as espécies que outros já registraram lá?”. Com base em suas hipóteses, ele define o que fará e como. Sozinho ou em grupo, escolhe locais, as vezes empreende viagens e expedições e não raro adquire equipamentos especiais para os registros que deseja realizar, entre outras iniciativas. Sabe exatamente como realizar as ações necessárias para sanar suas curiosidades. Ele desenvolve assim, a METODOLOGIA que vai aplicar para responder a cada hipótese que formulou.
Vai a campo e volta com seus equipamentos cheios de fotografias, capturas de sons ou outros registros de seu interesse. Na sequência ele tem um grande prazer na ANÁLISE de cada dado que coletou, que obteve em sua EXPERIMENTAÇÃO de campo. Como conhecedor daqueles grupos, ele inicia sua REVISÃO, reconhecendo espécies, consultando bibliografias, bancos de dados de biodiversidade, as vezes consultando outros cientistas, checando biogeografia, procurando registros da espécie feitos por outros cientistas no local ou nas proximidades que visitou, comparando o que encontrou em campo com o que outros obtiveram, abrangendo ainda o conhecimento já estabelecido pela literatura. Ele também conversa muito sobre o que encontrou com outros observadores, pede opiniões, debate detalhes e troca informações.
Assim ele chega a CONCLUSÕES sobre cada registro que fez. E então, tem a alegria de fazer a PUBLICAÇÃO dos resultados de suas revisões, metodologias, experimentações, produção e organização de dados, respostas a hipóteses, análises, trocas de informações, conclusões e tudo mais que envolveu sua caminhada até ali. Ele faz esta publicação em uma plataforma de ciência cidadã da sua escolha, por regra ao acesso aberto, para que o mundo tome conhecimento do que produziu. E ali está uma fotografia ou um som, mas também existem as informações sobre o método utilizado, incluindo até especificação do equipamento, data, georreferenciamento, autor da imagem, reconhecimento da espécie, anotações sobre o registro entre várias outras. Esta plataforma faz o papel de um JORNAL, ou de uma REVISTA de ciência cidadã, ao viabilizar o “tornar público” daquela legítima produção científica.
Agora percebemos que estamos falando de conteúdos científicos produzidos originalmente a partir de legítimo esforço criativo, conteúdos passíveis de citação, posto que têm autor bem definido e veículo de publicação.
Toda esta caminhada que resulta em uma publicação de registro da biodiversidade em uma plataforma de ciência cidadã, é fruto de um esforço criativo que abrange desde a decisão pelo local para realização dos registros, passando pela escolha, desenvolvimento e financiamento de métodos, as vezes criação de equipamentos e técnicas, por todas as análises necessárias até culminar na publicação. Este é um autêntico esforço de criatividade que se expressa nas ações concluídas com a publicação dos resultados de cada registro de biodiversidade em uma plataforma de ciência cidadã. Sem este esforço criativo, não há constatação de nenhum fato.
Notemos que o Art. 7º da Lei 9.610/98 prevê que para que uma obra seja considerada intelectual precisa atender à três requisitos:
- Ser a emanação do espírito criador, fruto de processo criativo;
- Ter forma sensível;
- Ser original.
Pois na publicação de um registro de biodiversidade em uma plataforma de ciência cidadã (materialização pública), a ideia que permitiu este resultado foi criação de seu autor e é original posto que não parte de nenhuma produção anterior. E é por isso que o iNaturalist, por exemplo, fornece ao autor a definição do tipo de proteção que haverá para dados e informações de maneira apartada daqueles da fotografia.
Também há quem empenhe energias tentando desqualificar os resultados deste trabalho de cientistas cidadãos, apontando-os como “fatos”, e por isso, desvinculados de qualquer direito autoral. As ciências biológicas, que abrangem biodiversidade, são consideradas factuais, e nem por isso os autores que produzem conhecimento nesta área, ou fazem descobertas, estão desprovidos de direitos autorais. Se o esforço criativo que resulta em publicações de registros da biodiversidade em plataformas de ciência cidadã não tem proteção autoral porque apenas se resumem a fatos, qual a razão para que a demonstração de qualquer fato apresentado em um artigo científico relacionado à biodiversidade tenha alguma proteção autoral?
Pensemos em um exemplo, a descoberta da estrutura do DNA, ácido desoxirribonucleico. A sua estrutura tridimensional, na forma de dupla-hélice, é um fato. E isto não significa que quem descobriu este fato através de seu esforço criativo, não tenha direito de autor sobre a materialização pública desta descoberta. Da mesma forma quem publica em uma plataforma de ciência cidadã. E se tirarmos o direito de autor sobre os dados produzidos por esta pessoa com base na ideia simplista de que são somente fatos, boa parte dos autores da produção científica do mundo também deveriam ter seus direitos de autor abolidos.
Uma importante referência nesta área é o SIBBr (Sistema de Informação sobre a Biodiversidade Brasileira), plataforma que integra tanto dados quanto informações justamente sobre a biodiversidade. O SIBBr é o nó brasileiro do GBIF (Global Biodiversity Information Facility), que abrange dados do iNaturalist quando os autores autorizam. O terceiro maior contribuidor da plataforma é justamente o iNaturalist, depois do eBird e do Herbário do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. O SIBBr é uma iniciativa do governo brasileiro e o texto apresentado em seu endereço eletrônico não deixa dúvidas sobre o entendimento no Brasil quanto ao direito do autor sobre os dados que produziu (https://sibbr.gov.br/page/termo-de-uso-de-dados.html):
"Direitos autorais associados à Licença de Uso de Dados
A Lei 9.610 de 1998 protege as obras intelectuais, literárias ou científicas. Os dados primários da biodiversidade são considerados descobertas (inéditos) e, portanto, integram a propriedade intelectual e são protegidos como tal. Pelo direito de exclusividade, o autor (pessoa física ou jurídica) é o único que pode explorar sua obra, gozar dos benefícios morais e econômicos resultantes dela ou ceder os direitos de exploração a terceiros. Dessa forma, os conjuntos de dados, ainda que estejam disponibilizados de forma aberta na internet, precisam ter seu uso autorizado pelo autor. (...)
Ao usar ou disponibilizar dados obtidos no sibbr.gov.br, ou ainda disponibilizar qualquer produto derivado desses dados, como uma publicação, o usuário deverá:
Reconhecer publicamente o publicador dos dados, além de cumprir os termos e condições da licença associada ao conjunto de dados.
(...)
Entrar em contato com o publicador para obter uma autorização específica, caso o uso que deseja dar aos dados não esteja dentro das condições estabelecidas pelo publicador.
(...)
- Manter o tipo de licença selecionada pelo publicador associada a cada um dos registros de ocorrência, caso esses sejam compartilhados para posterior reutilização por terceiros."
Ainda podemos questionar, no caso de uma plataforma de ciência cidadã, que os dados estão publicados em nome do autor que os produziu, perdendo, portanto, o pleno caráter de dados primários. Estão publicados ali por seu autor, são descobertas inéditas, frutos de seu esforço criativo e são originais, portanto, seu uso legal só é possível citando seu autor como se faz com qualquer uso de dado secundário.
Este argumento de que fatos não têm proteção autoral para se referir ao trabalho do cientista cidadão é mais uma tentativa de exclusão, uma forma de discriminação, de inferiorizar e desconstruir o esforço criativo real do cientista cidadão no exercício das descobertas científicas sobre a biodiversidade. Esta narrativa talvez seja conveniente para quem percebe o valor deste trabalho e quer fazer uso dele sem reconhecer quem o produziu.
Quem argumenta que as pessoas produtoras deste conhecimento não têm direitos autorais sobre ele, tem a opção de ir a campo por conta própria, com seu esforço “não criativo”, com seus recursos, apenas verificar fatos sobre os quais ninguém tem direito algum. Para ser coerente, deve disponibilizar em “domínio público” seus resultados, para que seu uso seja feito sem a atribuição de crédito autoral por qualquer interessado e de qualquer forma. Talvez este exercício mental deixe mais claro que cada publicação de registro de biodiversidade feito em uma plataforma de ciência cidadã é fruto de várias decisões resultantes de esforço criativo, e sim, seus autores detêm os direitos autorais que plataformas, como o iNaturalist, indicam para dados e informações, além daqueles relacionados às fotografias. Uma consequência óbvia deste tipo de abordagem abusiva seria a ocultação de dados das observações, obrigando os interessados a fazerem seu uso sem reconhecer quem produziu este conhecimento, a solicitar. Interessa para a sociedade esse tipo de empenho argumentativo, só para excluir cientistas cidadãos do reconhecimento pelo que efetivamente produzem? Qual problema há em citar os nomes das pessoas que produziram determinado conhecimento quando queremos fazer uso dele?
E toda esta trajetória não termina na publicação do registro de biodiversidade. É lá, naquele jornal aberto, a plataforma de ciência cidadã, que quaisquer outros cientistas têm o espaço próprio para a avaliação daquelas publicações, apontamento de novas análises possíveis e, conforme o caso, por exemplo, para proposição de aprimoramentos, inclusive nas identificações de espécies. A plataforma na qual as publicações deste cientista cidadão foram feitas é o local para esta livre e aberta REVISÃO POR PARES e este é o único local digno para esta atividade. Até porque é nele que deve acontecer qualquer correção e até mesmo RETRATAÇÃO das publicações, se comprovados embustes ou erros. Vemos que as plataformas de ciência cidadã e biodiversidade estão desempenhando o papel de um JORNAL científico, se aprimorando em tempo real, ganhando qualidade, confiabilidade, consistência, força, poder de ampla indexação de conteúdos, especialização em identificações de espécies e volume de conhecimento gerado, que a humanidade ainda não tinha tido a oportunidade de experimentar. Isso precisa ser respeitado, o que significa não tirar informações dali sem autorização, não fazer revisões fora destes ambientes sem retornar nada a eles, não realizar publicações que usem estes conteúdos desvinculando seus legítimos autores. Isso é ético, é justo.
É nesta esteira que o cientista cidadão deste perfil dedica tempo de vida, acrescentando conhecimento novo, legítimo e inédito para a ciência, conforme seus interesses que incluem uma atuação cientificamente completa, livre, autodidata, autônoma e independente. Não podemos tratar suas publicações como “dado coletado” que aguarda alguém outro usar em seu nome e para seus fins. Isso seria menosprezar e discriminar um trabalho muito mais elaborado que exigiu empenho intelectual, recursos privados e atuação da plataforma que viabiliza e modera a publicação. Inclusive é necessário reforçar que esta produção abrange obra fotográfica ou sonográfica, cujos direitos autorais são protegidos nacional e internacionalmente.
Ao longo dos anos, este cientista executa repetidamente todas as etapas do método científico necessárias ao fazer científico do seu interesse, promovendo aprimoramentos, melhorando seus métodos e resultados. Isto permite a construção de uma lista de tudo que produziu, que ele chama de life list, algo especialmente relevante para seus interesses. Esta lista é como o CURRÍCULO deste observador da natureza. Assim ele segue acrescentando conhecimento novo, legítimo e inédito para a ciência.
Quando temos compreensão genuína sobre metodologia científica, precisamos ser imparciais o suficiente para reconhecê-la nesta forma independente de fazer ciência. Precisamos admitir que este cientista cidadão realiza plenamente, ao seu modo, todas as etapas do método científico necessárias ao que produz. E isso fica mais difícil de negar quando vemos a cada dia suas publicações interessando mais e mais cientistas profissionais que desejam usá-las. E em uma caminhada ética a concretização deste uso, além de muito saudável, tem potencial de trazer mais resultados em parcerias respeitosamente constituídas.
Nesta realidade já estabelecida, as plataformas de biodiversidade precisam ser vistas com destaque no cenário desta ciência cidadã, ou desta ciência aberta. Estas iniciativas tornaram possível a integralidade da prática científica sem discriminação de vínculo institucional ou de escolaridade, tornando a inclusão científica uma realidade inegável. Elas protagonizam a viabilização da autonomia científica de qualquer interessado, ampliando imensamente o potencial da produção científica mundial.
Por tudo isto, plataformas de ciência cidadã não podem ser vistas como mais uma estratégia que coloca o cientista cidadão na posição de voluntário coletor de dados para outros que gostariam de publicá-los em seus nomes, estratégia que não tem nada de errado, mas é outra. Esta postura extrativista nestes casos, provoca um afastamento entre estes cientistas cidadãos autônomos e cientistas profissionais. E este afastamento é positivo para a sociedade?
A parceria equilibrada entre estes dois atores científicos é muito promissora, desde que ambos sejam beneficiados e tratados como iguais no todo daquilo que se pretende realizar unindo suas ações e resultados. Colocar esta produção do cientista cidadão deste perfil como colaboração subordinada ao cientista profissional, na posição de dados coletados voluntariamente, é uma forma de menosprezo ao seu trabalho, discriminação do seu papel científico, e também é forma de dominação, que não tem razão para se estabelecer. Este cientista cidadão é independente e não tem interesse em simplesmente se submeter entregando a sua obra para outro assinar. Isso é a realidade e não podemos fechar os olhos para ela, muito menos tentar remoldá-la segundo interesses de formatos profissionais. Desrespeitar ou discriminar neste cenário, é desperdiçar uma oportunidade incrível de ver ciência cidadã, ou ciência aberta, e ciência profissional trabalharem em parceria justa, em igualdade, gerando mais resultados importantes para a sociedade.
Cientistas cidadãos que atuam de forma independente e autônoma, construindo suas life lists, são líderes e executores na integralidade de seus próprios projetos de ciência cidadã. De qualquer forma seguirão fazendo sua ciência livremente, conforme seus interesses, produzindo resultados legítimos, cada vez mais organizados, elaborados, qualificados e inegáveis.
Este cientista cidadão quer muito pouco em troca do que faz, reconhecimento da autoria é uma das coisas elementares e éticas que espera, figurar como coautor de toda obra que sem sua produção se descaracterizaria é outra. E cabe lembrar que a cada ano somam-se mais destes cientistas cidadãos, que já são milhares.
Por sua vez, o cientista profissional não é financiador deste cientista cidadão. Mas o inverso, em geral, é verdadeiro. Esta realidade precisa compor o debate sobre esta ciência cidadã, ciência aberta ou qual seja o nome que se venha a definir. Se queremos que a ciência, no fim, seja uma só, composta harmonicamente por diversidade de cientistas e fazeres, precisamos reconhecer e respeitar a autonomia deste cientista cidadão e seus direitos como autor.
Por fim, agradeço especialmente aos observadores de aves e borboletas por tudo que me ensinaram na prática, e ao longo dos anos ímpares de convivência. Uma das lições importantes foi que este perfil de cientista cidadão é pleno, autêntico, autônomo, independente, produtor de ciência legítima, de alta qualidade, digna de reconhecimento e respeito por parte de toda a sociedade. Muito mais do que aquele que se apropria indevidamente do que não é seu, este cientista cidadão é cientista de fato.
Pela bióloga Maristela Zamoner
14 de junho de 2023
Publicação original em: https://terra-das-borboletas.blogspot.com/2023/06/cientista-cidadao-que-publica-em.html